Além de instalar uma nova crise na Praça dos Três Poderes, a divulgação da conversa com o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) expôs mais uma vez a fragilidade no sistema de comunicação do presidente Jair Bolsonaro. A falta de confidencialidade transformou o que seria uma conversa privada com um congressista próximo em novo atrito nas relações institucionais. Embora haja suspeitas de que a divulgação tenha sido combinada previamente, não seria a primeira vez que o presidente, adepto de celular pessoal para conversas com políticos e pessoas de sua confiança, tem diálogos expostos – em alguns casos, por ele próprio.
Orientado pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), Bolsonaro troca de número de celular com alguma frequência. Contudo, a maneira como interage com a tecnologia deixa brechas para contratempos. O presidente gosta de usar um dispositivo pessoal para receber e fazer ligações e para trocar mensagens com aliados, o que não é recomendado pela inteligência do governo.
O aparelho de telefonia celular disponibilizado pela Abin, o Terminal de Comunicação Segura (TCS), é repleto de restrições e não permite a instalação de aplicativos externos. Todos os agentes públicos que tratam de “assuntos de interesse do serviço público e do Estado” podem ter acesso ao equipamento, controlado pelo GSI. O dispositivo contém mecanismos de criptografia exclusivos do governo brasileiro, conforme explícito na portaria que disciplina o uso da tecnologia.
Mas Bolsonaro gosta é do WhatsApp. Embora não recomendado, ele usa o aplicativo para liderar o governo. É com ele que interage com a equipe, dá ordens, encaminha denúncias e até coordena a sua “Abin paralela”, formada por agentes de segurança nos Estados que lhe abastecem pela manhã com informações reservadas.
No fim de semana, Bolsonaro atendeu ao telefone pessoal com um arrastado “Fala, Kajuru”. O senador já disse no Senado que grava conversas com todos os políticos com quem interage. Tem até uma “caneta espiã” recebida do apresentador de TV José Luiz Datena. Para gravar Bolsonaro, ele narra que o método foi menos sofisticado. Telefonou, ligou o viva voz do celular e um de seus assessores aproximou outro aparelho em modo de gravação.
Kajuru nega que o telefonema para tratar da CPI da Covid tenha sido um “teatro”. “Se alguém fez teatro aí, foi ele”, disse o senador em entrevista ao Estadão. Já Bolsonaro reclamou da divulgação a apoiadores e disse que, para ser gravado, seria necessária autorização judicial, o que não é verdade, uma vez que não há proibição na lei nos casos em que a divulgação é feita por um dos interlocutores.
Segundo especialistas, mesmo as mais refinadas tecnologias da inteligência do governo podem deixar brechas para que o presidente fique exposto. A técnica de Kajuru driblaria até mecanismos mais sofisticados. Trata-se de uma insegurança inerente à comunicação por meio telefônico porque é impossível controlar a reação do interlocutor.
Especialista em cibersegurança, Lucas Galvão, da Mission Command, diz ser possível aplicar camadas de proteção sobre as formas de se comunicar por dispositivos móveis, seja por SMS, e-mail ou voz. Esse incremento, porém, depende também da disposição do usuário – no caso, o presidente – de acolher novos protocolos.
“O presidente deveria se comunicar através das ferramentas que o próprio governo e a Abin recomendam”, disse. “Creio que esbarram na ‘boa prática de governança’ versus ‘resistência ao uso dessas tecnologias’, que por vezes não têm essa roupagem comum, vista nos famosos apps, como o Whatsapp”.
Em síntese, todo mundo já usa o WhatsApp e fica inviável migrar para um novo sistema usado por pouca gente e que compromete a agradabilidade do uso em nome da segurança.
“Não sabemos quanto o próprio presidente está disposto (a se adaptar a protocolos mais rígidos). Tem pessoas que não têm tanta inclinação para ler letras miúdas de protocolos. Quanto mais proteção você quer, mais você tem que buscar conhecimento sobre o assunto”, afirmou Galvão.
A preferência do presidente pelas ferramentas mais populares já rendeu desgastes anteriores. Em maio passado, no auge da crise com o então ministro Sérgio Moro, mensagens trocadas com o ex-chefe da pasta da Justiça se tornaram públicas e trouxeram à luz a pressão pela troca do comando da Polícia Federal para proteger aliados.
Na mesma época, o presidente teve a ideia de, diante das câmeras que o aguardavam na chegada ao Palácio da Alvorada, mostrar as mensagens trocadas com Moro para rebater a tese de interferência na polícia. Acabou mostrando também, de maneira inadvertida, que cobrou de Moro informações sobre participação da Força Nacional em ajuda a órgão ambiental para a destruição de maquinário usado no desmatamento da Amazônia. O deslize colocou mais uma lenha na fogueira da crise ambiental.
Os desentendimentos em série que resultaram na demissão do então Secretário-Geral da Presidência Gustavo Bebianno também passaram pelo “zap” de Bolsonaro. Primeiro, em fevereiro de 2019, um áudio foi parar nas mãos do vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ). O filho do presidente divulgou a gravação para afirmar que Bebianno, falecido em março de 2020, mentia ao dizer que o então aliado conversara com o presidente sobre a crise dos “laranjas do PSL”, partido pelo qual Bolsonaro foi eleito.
Mais tarde, mais áudios da conversa entre Bebianno e Bolsonaro chegaram ao público e mostraram outra versão da história, desmentindo o clã. “Querer empurrar essa batata quente desse dinheiro lá para candidata em Pernambuco pro meu colo, aí não vai dar certo. Aí é desonestidade e falta de caráter”, dizia o presidente, em uma das gravações.
Procurado, o GSI da Presidência da República não se manifestou sobre a segurança na comunicação eletrônica do presidente Jair Bolsonaro.