O reconhecimento e o respeito pelas práticas culturais, particularmente na gestação, no parto e no pós-parto. A luta contra a violência obstétrica com a inserção de práticas interculturais no atendimento à saúde e ao voto, entre outros. Promoção da não violência ativa, a não criminalização da migração, em que se reconheça como direito social o direito a estar regularizados nos territórios em que vivem.
Luta contra o racismo e a xenofobia, vivenciados por mulheres imigrantes, racializadas e de uma cultura diferente. Retomada das raízes, autoidentificando-se como parte de uma nação originária, mudando seu olhar sobre si mesma, tendo orgulho pelo seu fenótipo e aparência, seus sobrenomes, um resgate da cultura e das práticas culturais e espirituais neste território brasileiro.
Junto a essa luta contínua soma-se o fato de que o ano de 2020 foi muito difícil em geral para pessoas imigrantes. No caso da comunidade boliviana, que tem muitos trabalhadores/as dentro da indústria da confecção e trabalhos informais, a falta de demanda pelos seus serviços deixou muitas pessoas sem renda para pagar aluguéis (imigrantes têm dificuldades em locar um imóvel em São Paulo), alimentação e coisas básicas para sobreviver, o que levou muitos deles a retornar para a Bolívia ou partir para cidades do interior do estado de São Paulo. Pessoas começaram a viver nas ruas.
Muitos tiveram de trabalhar recebendo muito pouco, por exemplo ao costurar máscaras, porque precisavam comer e, como sempre, pessoas se aproveitaram e lucraram explorando a mão de obra imigrante. A comunidade boliviana é organizada em seu “território”, o que ajudou no acesso a cestas básicas. As redes de apoio dentro da comunidade são fundamentais para a sobrevivência e a principal estratégia foi e está sendo o trabalho em rede, no qual se compartilha o que se tem com os que não têm nada.
Ainda em 2020, o Golpe de Estado que se deu na Bolívia marcou um período de retrocesso no país, considerado plurinacional, pois reconhece 36 Nações Originárias, com 36 idiomas oficiais, em que a Whipala (bandeira que representa as Nações Originárias) é um símbolo do Estado boliviano, incluindo os princípios indígenas na constituição política – “Ama sua, ama llulla e ama quella” (“Não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja preguiçoso”).
O levantamento dessas informações poderia ter sido realizado com base em diferentes fontes, mas ele se origina de uma única pessoa – Jobana Moya Aramayo, mulher boliviana que sabe demais. Jobana faz parte de um grupo de mulheres que sabem demais e sofrem diariamente por terem o olhar aguçado para o todo. Elas, em muitos casos, sabem demais não por acumularem títulos acadêmicos, mas por terem um olhar amplo sobre o mundo, a partir de suas construções simbólicas. Seus corpos e suas mentes são perspicazes o suficiente para não se renderem a imposições do sistema, e continuar olhando em 360 graus. Ao mesmo tempo que luta pela vida no Brasil, Jobana observa e atua atenta para a manutenção de direitos na Bolívia e para cuidar da sua família.
Saber demais, para essas mulheres, dá a elas autonomia sobre seus corpos, suas maneiras de pensar e sobretudo de agir. Mulheres que sabem demais têm cada vez mais consciência de que precisam se afastar das amarras e imposições que os corpos femininos são fadados a internalizar. Mas, por saber demais, na maioria das vezes, não estão protegidas das opressões daqueles que tentam capturar suas subjetividades ou silenciar sua sabedoria. Assim como Jobana, Yakui Tupinambá é uma mulher que sabe demais, e paga caro por isso.
Sua experiência cultural, apesar de estar impregnada de elementos da cultura “dominante e invasora”, não foi cooptada por essa influência. Desde a infância, ela consegue enxergar mais que um palmo diante do nariz. Essa habilidade lhe trouxe diversos transtornos, como ser tachada de doida, maluca, louca. Porém, mesmo ouvindo adjetivos com efeitos maledicentes, não se permitiu usar viseiras de “burro de carroça”, como ela mesma afirma. Por longos anos, o máximo que conseguiram foi fazê-la se sentir um peixe fora d’água.
Pertencente à raiz originária da etnia Tupinambá de Olivença, ela vivenciou todo o processo de usurpação e sequestros identitários e invisibilidade junto do seu povo na Bahia, participando do Levante Tupinambá, que se iniciou no final da década de 1990 e que foi considerado a grande escalada para a liberdade. Quando ingressou no Movimento Tupinambá e começou o processo da escuta de seus parentes, foi percebendo que nada que ouvia antes fazia sentido para sua vida, apenas serviu para esclarecer que ser diferente condiz com a individualidade e a formação cultural que recebemos do grupo ao qual pertencemos. Hoje, Yakui Tupinambá orgulha-se disso! Ela tem certeza de que ser livre é um grande incômodo para aqueles que se permitiram ser dominados, guiados, robotizados. Para ela, além desses, existe um grupo que se beneficia da ignorância e, por isso, a estimula.
Das mais difíceis maneiras de ser e estar no mundo, Yakui destaca que não é fácil ser mulher indígena, nordestina e sem o fenótipo que contempla os saudosistas da “Carta de Pero Vaz de Caminha”, vivendo ainda em um sistema patriarcal, misógino, medíocre e assassino genocida. Talvez esse seja o retrato fiel do peso de saber demais. É reconhecer em cada gesto do opressor (ou opressora) onde está impregnado o pensamento monopolizador de mentes, espíritos e corpos.
Mas o que diz Jobana sobre o peso de saber demais? O peso de saber, para ela, vem quando você percebe que está enxergando algo que no momento a maior parte das pessoas não enxerga, por diferentes motivos ou apenas por não querer, porque isso tira as pessoas do lugar cômodo em que estão ou do lugar de poder, obrigando-as a refletir sobre verdades que lhe são convenientes. Jobana lembra que as mulheres que sabem demais muitas vezes se sentem sozinhas, incompreendidas pelo mundo e, nos momentos de dúvida, pensam em desistir. Saber demais é também um compromisso, ele não pode ficar só com você, tem de ser compartilhado pelo bem comum. Se uma mulher que sabe demais fica desatenta, ela pode cair na armadilha do prestígio e do egocentrismo. “Os saberes são de todos, somos um processo histórico-social e nada é só seu”, comenta.
Mas que pontos positivos existem em saber demais? Jobana me diz que os pontos positivos as colocam em situação de superar as dificuldades, de se fortalecer, de ter fé nas certezas que nascem do profundo, que nascem da necessidade de dar respostas a problemas comuns para a comunidade.
Já Yakui, no alto de sua experiência de vida, ressalta que ter voz e mostrar a cara exige esforços descomunais e o primeiro deles é garantir o direito à vida. “A experiência humana é orgânica – nascer, crescer, envelhecer. Quando conseguimos, ele é pautado por processos de aprendizagem. A ignorância é fortalecida quando permitimos à mediocridade exercer domínios, tornando-nos agentes obscuros”, frisa. E, como uma mulher que sabe demais, afirma que todo esse aprendizado lhe mostrou que até mesmo da negatividade conseguimos colher coisas positivas. Tudo é uma questão de equilíbrio.