PHILLIPPE WATANABE – Se você tiver câncer ou doenças autoimunes, olhe para sua boca e arranque seus dentes. Parece extremo, mas é o que indica um documentário novo na Netflix que deixou dentistas de cabelo em pé. Os especialistas acusam a obra de ser antiética e nociva para pacientes ao espalhar informações falsas.
O documentário “A Raiz do Problema” (“Root Cause”, no original) começa com declarações fortes. “Não há nenhum ramo da medicina no qual um órgão morto é deixado no corpo, exceto na odontologia, com tratamento de canal. Quando um dedo está gangrenado, ele tem que ser amputado”, diz uma das pessoas consultadas no filme. “Se você acha que pode ignorar um dente infectado e tóxico, e não ter consequências sistêmicas, acho que você está se iludindo”, diz.
Segundo os entrevistados no filme, o tratamento de canal pode causar câncer, problemas mentais e cardíacos, ataques de pânico, fadiga, infecções nos rins e na bexiga, artrite e por aí vai. Assim, a melhor maneira de resolver doenças seria arrancando os dentes com tratamento de canal -ou, melhor ainda, evitar fazer o tratamento de canal e arrancar o dente problemático.
Em uma determinada parte do documentário, uma das pessoas entrevistadas chega a dizer que um paciente foi curado de câncer de garganta após extrair dentes e usar homeopatia. A maior parte dos supostos especialistas entrevistados para o documentário não tem publicações na PubMed (uma das maiores base de dados de estudos da área da saúde). Outros nem mesmo trabalham na área odontológica.
Outro dos entrevistados é autor de livros, entre os quais um que promete a cura do câncer por uma substância produzida no fígado que se chama “panaceia primitiva” (“Primal Panacea”, que também é o título da obra). “Milhares de estudos provam que a quantidade suficiente dessa substância proporciona propriedades curativas e protetivas”, diz o site do suposto especialista, também autor de “Curando o Incurável” e “Morte pelo Cálcio”.
“Canais são provavelmente um dos tratamentos mais perniciosos e tóxicos que influenciam obscuramente sua saúde. Se você está lutando para entender porque está tão doente e tem múltiplos canais, por favor avalie essa questão”, diz outro dos entrevistados que não é especialista na área, mas tem um site de venda de produtos para bem-estar e expressa opiniões antivacinação.
Outra pessoa citada no documentário como uma das vozes centrais na odontologia holística -sobre a qual o filme trata- é Hal Huggins. Segundo reportagem de 2006 do jornal Los Angeles Times, o dentista teve a licença cassada em 1996 por prática ilegal de medicina e indicação de tratamentos desnecessários. No caso que culminou na cassação, Huggins, além de arrancar os tratamentos de canal de um casal de idosos (um deles com câncer), indicou terapias não convencionais, como sauna e vitamina C intravenosa -a um custo, à época, de US$ 21 mil.
Todas as afirmações feitas no documentário, segundo especialistas e entidades odontológicas, não têm nenhuma base científica. “A Associação Americana de Endodontistas [AAE] considera que a informação apresentada no filme é prejudicial aos pacientes”, afirma a entidade, em nota, à reportagem. “O sucesso dos tratamentos de canal é baseado em ciência, com múltiplos estudos e pesquisas revisadas por pares nos últimos cem anos demonstrando sua segurança e eficácia.”
A Sela (Sociedade Latinoamericana de Endodontia) enviou uma carta à Netflix pedindo a retirada do documentário da plataforma. “Há implicações éticas nas opiniões falsas, tendenciosas e degradantes que desinformam e confundem a sociedade”, diz a carta. A Associação Brasileira de Odontologia afirma, em nota, que os profissionais entrevistados não têm relevância no universo acadêmico e que agem sob a “‘odontologia holística’, que não é reconhecida como uma área odontológica pelos órgãos competentes”.
Miguel Haddad, presidente da câmara técnica de endodontia do Crosp (Conselho Regional de Odontologia de São Paulo), afirma que a entidade também já pediu um posicionamento da Netflix sobre o assunto. “O documentário induz a população a tomar condutas precipitadas. E induz também profissionais mais limitados a se aproveitar dessa situação, conduzindo o indivíduo a extrair o dente e colocar um implante”, diz Haddad. “É criminoso.”
Os tratamentos de canal são necessários quando um dente, por cáries, rachaduras ou outros traumas, está com sua raiz inflamada ou infeccionada. Nesses casos, os dentistas retiram a polpa dental -onde estão nervos e vasos sanguíneos-, fazem a desinfecção do local para exterminar micro-organismos potencialmente nocivos e fecham a abertura.
Segundo o Fernando Reis, especialista em estética ortodôntica, a extração de dentes era muito comum antigamente em casos de dor e inflamação, quando ainda não havia o tratamento de canal. O documentário defende que não é possível se livrar completamente das bactérias no dente e que a permanência delas na área acarretaria as diversas doenças citadas continuamente na obra.
“Eu não sei se é ignorância, desconhecimento ou se tem interesse comercial por trás do documentário”, afirma Giulio Gavini, pesquisador da área de endodontia (responsável pelos tratamentos de canal) da USP. Segundo o pesquisador, o canal radicular -parte da raiz- não é totalmente esterilizado, mas há uma quantidade mínima de bactérias residuais que são “sepultadas” pela obturação e não têm potencial danoso.
Em casos de tratamentos malfeitos, possíveis problemas e manifestações ocorrem no próprio local, e não em outras regiões do corpo. Um estudo de 2013 publicado na conceituada revista científica americana Jama Otolaryngology demonstrou que não há relação entre câncer de cabeça e pescoço e a existência de múltiplos tratamentos endodônticos em uma pessoa.
Considerando os avanços na odontologia atual, é infundado indicar a extração de dentes para qualquer situação, diz Carla Sipert, pesquisadora de endodontia da USP. “É uma recomendação lamentável, sem respaldo algum. É como se um filme, usando experiência de pessoas aleatórias, afirmasse que tudo que nós sabemos sobre o Holocausto não passou de uma encenação.”
A extração é indicada apenas para os casos em que há comprometimento da estrutura dentária e a prática pode trazer outros problemas. “Quando o dente é extraído, o osso que o suportava é reabsorvido. Com a perda óssea, fica muito difícil colocar o implante e, por vezes, essa tentativa pode ser frustrada e o implante permanecer por pouco tempo”, diz. “O comprometimento da qualidade de vida é muito grande.”Segundo Sipert, somente na endocardite bacteriana há relação de causa e efeito da má higiene bucal com a infecção no coração.
A especialista da USP compara o documentário com afirmações falsas sobre supostos perigos relacionados a vacinas. “A grande preocupação é que um documentário desses seduza o público leigo em torno de um assunto que ele pode não ter conhecimento técnico para verificar a veracidade dos dados. É antiético. Você não pode conduzir o leigo a tomar decisões prejudiciais à saúde”, afirma Sipert.Na página do filme no site da Amazon há diversas críticas positivas, algumas afirmando a importância das informações que estariam sendo reveladas.
O diretor do documentário, Frazer Bailey, disse à reportagem que o documentário retrata uma experiência pessoal e que não teve motivações financeiras para a realização da obra. Questionado sobre as bases científicas usadas para o filme, Bailey disse: “Eu não sou um cientista, eu sou cineasta. Eu dirijo comerciais de TV para viver.”
Ele afirma que uma das entrevistadas -que não tem publicações em seu nome- seria a melhor pessoa para apresentar as evidências científicas. Bailey também afirmou que não procurou instituições reconhecidas para comentar o assunto por já saber o que ouviria. “Estou presumindo que você é uma pessoa inteligente”, disse o diretor ao repórter. “Nos anos 50 e 60, dados científicos mostravam que fumar tabaco era bom para a saúde, ‘médicos recomendam um cigarro’, essa era a ciência. Ciência pode ser comprada e paga.”
Na verdade, desde as primeiras décadas do século 20, pesquisas científicas independentes apontavam os malefícios do cigarro. A indústria do tabaco, contudo, através de marketing e negação, tentava criar dúvidas quanto aos efeitos negativos sobre a saúde.
A reportagem também tentou contato com a Netflix, que afirmou que o prazo para a resposta não era suficiente. Após mais tempo ter sido concedido, a Netflix parou de responder às tentativas de contato da reportagem. Finalmente, depois de nova tentativa de contato, a plataforma afirmou que não iria comentar o assunto.