Um grupo católico de rituais questionados até pelo Vaticano e alvo de denúncias de dezenas de ex-integrantes. Quem são os Arautos do Evangelho? Nossos repórteres ouviram mais de 20 pessoas, entre ex-arautos, pais de crianças e adolescentes que vivem isolados em seus internatos. São relatos de uma rotina de alienação, sem contato com o mundo exterior. Situação confirmada por laudos feitos a pedido do Ministério Público, que o Fantástico revela com exclusividade.
É no meio da Serra da Cantareira, numa área isolada, afastada da maior metrópole do país, que os Arautos do Evangelho construíram castelos e colégios, onde jovens vivem em sistema de internato.
Este grupo católico conservador surgiu do rompimento com outra sociedade conservadora, a TFP, que defende a tradição, a família e a propriedade. “Não se consegue nada verdadeiramente valoroso sem disciplina”, afirmou João Clá, fundador, em 2002.
Foi em 1999 que o monsenhor João Clá Dias, que fazia parte da TFP, fundou os Arautos do Evangelho. De acordo com o estatuto, com a missão de levar a animação cristã das realidades temporais, segundo o seu próprio carisma. Hoje, a associação tem 15 colégios no Brasil, com cerca de 700 alunos.
Em 2001, os Arautos foram reconhecidos pelo Vaticano como associação religiosa.
Mas os Arautos enfrentam uma série de denúncias desde o início do ano passado. Elas foram feitas por 40 pessoas no Ministério Público, na cidade de Caieiras, na região metropolitana de São Paulo, onde ficam os castelos do grupo. Os relatos são de abuso psicológico, humilhações, assédio e estupro.
As mães ouvidas pelo Fantástico dizem que começaram a desconfiar quando notaram uma mudança de comportamento nos filhos. Elas afirmam que os Arautos estimulam o afastamento da família.
“Minha filha virou um robô. Minha filha não existe. Ela não tem amor pela gente, não tem carinho, não tem nada. Ela é um robô”, lamenta uma delas. “A família, ela tem que assim sumir do mapa. Porque, segundo eles, a família atrapalha o caminhar do jovem lá dentro”, relembra o ex-aluno Alex Ribeiro de Lima. “Eles ensinavam que a gente não tinha que amar nossos pais, como se eles tivessem ensinado tudo que é de ruim que a gente aprendeu no mundo foi eles que ensinaram”, completa uma jovem que também estudou lá.
O Fantástico ouviu 23 pessoas em vários estados do Brasil e no exterior. Doze delas estão citadas no inquérito aberto no Ministério Público. Todas relatam situações parecidas. A maioria prefere não mostrar o rosto.
Essas mães dizem que os Arautos usam o medo para manter os internos perto deles. “Meu filho tinha medo de vim pra casa, meu filho achava realmente que o mundo ia acabar. E que a única salvação dele era dentro dos Arautos do Evangelho”, diz Patrícia Sampaio.
De acordo com os relatos, os jovens são preparados para a Bagarre, uma espécie de castigo universal. Essa moça, que foi interna dos Arautos durante 5 anos, explica como seria aplicado esse castigo: “Deus iria punir a terra por todos os pecados que foram cometidos aqui. Então, a natureza se revoltaria contra o homem, os demônios apareceriam e aconteceria um confronto entre os supostos filhos de luz e os filhos de trevas. Os filhos de luz são os Arautos e os filhos de trevas somos todos nós, todo o resto. Inclusive, lá dentro, eles têm treinamento pra preparar essas pessoas pro momento da bagarre”.
Um ex-interno conta que chegou a fazer cursos de tiro. Um deles, de tiro parado. O outro, de tiro em movimento, como mostram esses certificados: “O motivo de eu ter feito este treino de tiro foi para uma eventual preparação de bagarre, porque eles diziam internamente que estavam na eminência de serem atacados por pessoas que odiavam a religião, que odiavam a igreja católica”.
Alex passou 18 anos lá dentro e diz que ainda se recupera dos traumas. Ele lembra, por exemplo, de um ritual que podia durar horas e que ele classifica como lavagem cerebral: “Lá eles também têm capítulos. Você deita no chão e vem um superior e começa a fazer uma série de acusações. Só que existe uma tática – né? – nesses capítulos que eles fazem. Controlar a pessoa que está ali deitado, para que a pessoa se sinta um grande pecador, uma pessoa que não vale nada. E eles começam a fazer essa lavagem cerebral na mente das pessoas”.
Ex-internas também denunciam abuso sexual e estupros. Este boletim de ocorrência foi feito na polícia, em maio desse ano. A moça contou que, aos 13 anos, foi acordada pela encarregada do alojamento para tomar banho. Percebeu que estava com sangramento e a região íntima irritada e inchada. Ela acredita ter sido dopada.
Outra ex-interna, que hoje vive no Canadá, informou ao Ministério Público que, dos 12 aos 16 anos, sofreu com as carícias que João Clá fazia nos seus seios e nas nádegas. A colombiana Maria Paula veio com 11 anos para o Brasil. Ficou cerca de dois anos no castelo. Ela relatou ao Ministério Público que foi vítima de João Clá: “Ele me chamou depois da missa, entramos na sacristia e aí, quando tava sacristia, vi que ele deu um beijo em uma menina. Eu fiquei pensativa: será que esse beijo é na boca ou na bochecha? Então quando ele me deu um beijo na boca, eu fiquei pensando: ‘Deus o que é isso?’ Uma menina que vivia na Colômbia comigo também me contou que ele deu um beijo na boca. Então eu perguntei e ela disse que bom, então recebeu a graça”.
Há mais de dez anos, João Clá teve um acidente vascular cerebral. Em 2017, renunciou ao cargo de presidente do grupo.
“Essa afirmação de beijo na boca é calúnia. Irmã, a senhora viu alguma vez isso? Afirmar que um boletim de ocorrência possa ser indício de prova. Boletim de ocorrência é um primeiro passo. É um ato unilateral, de alguém que vai na delegacia e faz uma denúncia. A delegada já ouviu. Ouviu inclusive a irmã que pode dar o testemunho dela agora, porque ela também foi colocada como cúmplice disso. Essa investigação vai seguir o seu curso e quando for concluída a investigação, aí sim cada um vai saber o que fazer. Tem até direito de recorrer à Justiça como denunciação caluniosa”, afirma o padre Alex Barbosa de Brito, sacerdote dos Arautos.
“Fui na delegacia por conta daquela denúncia, que posso afirmar é inteiramente falsa, caluniosa até”, completa a irmã.
Há também relatos de racismo. “A maioria são loiros de olhos claros. Quando tem alguém mais moreninho que você vê, ele sempre tem uma função específica. Normalmente é ficar na cozinha. Cozinha para as pessoas, limpa, lava e, inclusive, eles almoçam separados”, relata um denunciante.
Ao Fantástico, representantes dos Arautos negaram as denúncias de racismo. “Isso é absolutamente falso. Até poderia mostrar fartamente como convivemos entre raças. Nós temos indianas, temos da República Dominicana – que são muitas bem coloridas -, temos aqui daqui do Brasil – da Bahia, do Nordeste. Todas muito moreninhas e todas convivem com as loiras do sul numa perfeita harmonia”, fala madre Mariana, superiora dos Arautos.
Este video, divulgado nas redes sociais, levou o Vaticano a abrir uma investigação em 2017 e nomear, no fim do mês passado, o cardeal Dom Raymundo Damasceno como comissário dos Arautos, uma espécie de interventor. No vídeo, um sacerdote lê o que seria o interrogatório de um demônio em uma sessão de exorcismo. Ao lado do sacerdote, sentado, está o fundador dos Arautos, João Clá. No interrogatório, o demônio teria previsto a morte do Papa Francisco e dito que tem poder sobre ele.
Em outro vídeo, o fundador João Clá grita palavras em latim e bate no rosto de uma jovem com uma folha de papel. Ele tenta obrigá-la a fazer votos. “Então tive acesso aos vídeos. Os vídeos falam por si. João Clá bate nas meninas, né? A reunião que o João Clá e os padres dele têm com o Satanás é uma coisa louca. Então, não há dúvida que não é um bom lugar para um filho estar, né? Eu fui buscar meu filho”, afirma mãe de ex-aluno.
Ano passado, a então promotora do caso arquivou uma série de denúncias contra os Arautos. Mas a advogada que representa as famílias que reclamam conseguiu que o conselho do Ministério Público reabrisse o caso.
Peritos do Ministério Público, das áreas de assistência social e de psicologia, começaram a vistoriar em junho deste ano as dependências dos Arautos para analisar as condições em que vivem crianças e adolescentes.
O Ministério Público constatou que os adolescentes não podem ter telefone celular. Todos usam um único aparelho, mas apenas para enviar mensagens por whatsapp. As conversas, embora pessoais, ficam visíveis a todos. O que, segundo os peritos, é uma violação do direito à privacidade dos adolescentes. Para ligar para as famílias, eles têm que usar telefones fixos.
Os laudos também destacam que em nenhum dos quartos havia fotos de parentes ou de amigos dos internos. Na maioria dos ambientes chamam a atenção as fotos de João Clá e de pessoas enaltecidas pelos Arautos. Os peritos concluem que isso pode ser uma estratégia para afastar o interno da vida lá fora.
Os peritos não encontraram livros sobre história do Brasil ou mesmo de literatura nacional. Também não foram encontrados livros didáticos. Apenas enciclopédias antigas e livros escritos pelo fundador dos Arautos, João Clá. Religiosas que receberam os peritos informaram que havia uma outra biblioteca, com livros usados na escola, mas que elas não estavam com a chave.
Para o Ministério Público, o Estatuto da Criança e do Adolescente não é respeitado pelos Arautos. Nem mesmo a liberdade de ir e vir. O laudo aponta ainda violação de direitos previstos na Constituição, comprometendo a capacidade dos internos de se defenderem da violência praticada pelos superiores.
Os religiosos repudiaram todas as acusações e disseram que o sistema de ensino que eles utilizam nos colégios segue o que é determinado pelo Ministério da Educação. Os Arautos se dizem vítimas de perseguição: “Nós estamos diante de uma situação, de uma campanha de difamação feita por desafetos da instituição, desafetos da igreja em geral. Uma campanha de perseguição religiosa onde a igreja católica está em foco e a instituição em particular”
“Durmo quatro horas e acordo. Durmo duas horas e acordo. Porque eu tenho pesadelos”, revela uma suposta vítima.