Pessoas gordas enfrentam diariamente não só barreiras como preconceito, falta de equipamentos públicos e acessibilidade mas também o descaso e até desprezo de profissionais da saúde. No cenário da pandemia de Covid-19, em que a obesidade é um fator associado a quadros mais graves e a mortes, a gordofobia também impede o acesso à vacina, o que pode contribuir para uma letalidade ainda mais exacerbada nesse grupo.
No próximo dia 28, seguindo o calendário da Prefeitura do Rio, o plano da instrumentadora cirúrgica Mariana Costa, 26, é finalmente se imunizar contra o novo coronavírus. Ela está se isolando em casa desde março do ano passado, quando a situação começou a se complicar na cidade e em todo o Brasil.
Ela se encaixa no quadro de obesidade grave (mórbida), ou seja, tem IMC acima de 40 kg/m². Esse número é calculado ao se dividir o peso (em kg) pelo quadrado da altura (em metros). Para ser imunizada, porém, Mariana teve que iniciar uma jornada em busca do reconhecimento de um médico sobre sua condição.
O problema é que na UBS, em uma consulta, indicaram que só um médico especialista poderia avaliá-la. Para acelerar o processo, procurou uma clínica popular. Mas o médico de lá também resistiu em atestar a presença de obesidade.
“Como eu não tinha diabetes, hipertensão ou outros problemas de saúde, ele disse que, como eu não fazia nada para emagrecer, ele não estava convencido de que deveria fornecer um atestado -mesmo que a única exigência para se vacinar seja o IMC acima de 40. Ele nem cogitou usar a balança que estava atrás dele”, relata.
E, por mais que uma balança e fita métrica possam ser usadas por qualquer profissional da saúde para averiguar quem tem ou não IMC acima de 40, as prefeituras do Rio e de São Paulo em suas diretrizes afirmaram que é necessária a comprovação por meio de documentos (receitas, exames, relatórios) que contenham nome do paciente, nome do médico e número de registro do profissional no respectivo conselho regional de medicina.
Ainda que não fosse esse o escopo da consulta, o médico com quem Mariana se consultou resolveu pedir exames de sangue, como dosagem de colesterol e triglicérides. “Ele dizia que algo ia dar acima do normal, e aí ele poderia se convencer de dar o papel.”
Dias depois, já com os exames em mãos, Mariana finalmente voltou ao médico com os resultados, todos normais. “Ele falou que eu tinha que fazer uma [cirurgia] bariátrica, passou recomendações padronizadas e me deu o papel. Não me pesou nem me mediu.”
Para Mariana, médicos como esse a afastam de uma vida saudável. “Eu sei que é importante buscar saúde como forma de prevenir doenças, mas eu não consigo fazer uma consulta anual porque é uma humilhação ter o corpo automaticamente reconhecido como doente. Perdi minha mãe faz pouco mais de um ano. Ela tinha fibromialgia [doença crônica que causa dor e fraqueza] e negligenciava a saúde por causa da obesidade -é um trauma de mais de uma geração.”
Casos como o de Mariana são comuns, relatam profissionais de saúde. “Desde o início da pandemia, já se sabe que as pessoas com obesidade estão em risco. E agora vejo comentários de profissionais de saúde criticando e até julgando as pessoas com obesidade por estarem se vacinando. É algo contraditório, como se a obesidade, ao contrário de outras condições, fosse culpa das pessoas”, diz à reportagem Fernanda Imamura, nutricionista que fez um post em rede social no último dia 15 dizendo que quem tem obesidade deve correr atrás desse direito -e que não precisam se justificar. Ela é colaboradora do Ambulim, Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da USP.
Uma das pessoas que procurou Imamura para desabafar foi Tatiana (nome fictício), 34, que conta que nos últimos oito anos foi ao médico apenas quatro vezes, em casos de urgência. “Eu nem marco consulta com ginecologista porque, toda vez que eu vou, o meu peso é a primeira e às vezes a única coisa que eles veem. Eu já ouvi muita crueldade em consultório, já falaram que eu devia apanhar na cara por estar tão gorda, já me deram receita não solicitada de remédio para emagrecer.”
“Ser obesa é ter o corpo julgado, sem qualquer cuidado com a minha história e meus sentimentos. Ir ao médico para solicitar um laudo que ateste que eu sou gorda, obesa mórbida, e que eu engordei 20 kg desde o começo da pandemia é me colocar numa situação de vulnerabilidade emocional muito grande”, segue o relato.
Ela diz que quer se vacinar, mas que tem medo de como pode ser tratada. “Eu me sinto negligente e relapsa comigo mesma, mas eu não quero me sentir violentada numa consulta. Não tenho condições de lidar com o que pode acontecer num consultório ou num posto de saúde… E aí fico assim, sem consulta, sem exame, sem vacina, sem nada.”
Uma saída explorada por pessoas gordas e ativistas antigordofobia é a criação de listas de profissionais que acolhem pessoas gordas em sua integralidade. Um deles é o nutricionista Erick Cuzziol, que nas redes sociais é o @nutricionistagordo.
“Existe preconceito, estigma, que vai do leigo ao especialista, o que só agrava a situação. Muitas pessoas abandonam a ideia de se tratar. A agressividade e a violência não têm justificativa”, afirma Cuzziol.
A possibilidade de tratar a obesidade como doença, e não como mera consequência de um comportamento inadequado, defendida pela OMS, visa ampliar a possibilidade de cuidado, diz o nutricionista. Mas, na prática, o desdém com pessoas gordas acaba impedindo o tratamento adequado de doenças como artrite e lipedemas (tumores de gordura), entre outras condições.
Imamura diz que há falhas na própria formação dos profissionais. “Não se discute, não se fala no tema. Precisamos falar mais sobre isso para que até as palavras dos profissionais de saúde deixem de ter essa característica de discriminação. Temos um longo caminho pela frente.”