“A liberdade é constituída de várias formas.” Com essa frase, um dos detentos da Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira, em Bangu, na Zona Oeste do Rio, começa uma redação sobre o projeto que permite reduzir quatro dias de pena para cada livro lido. A iniciativa da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado (Seap) completa três anos em 2019.
Um preso condenado a 18 anos de prisão por homicídio e participante do programa — a entrevista foi dada sob a condição de anonimato. A permissão para conversar com o detento foi obtida por meio de uma autorização da Seap e da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do RJ.
O detento lê um livro por mês e entrega uma resenha crítica ao coordenador do projeto. Com 12 livros lidos, já reduziu a pena em 48 dias. Na prisão, conseguiu terminar o Ensino Médio e agora sonha em cursar Direito se conseguir o benefício da prisão em regime semiaberto.
“Eu era uma pessoa muito explosiva. Hoje, com a leitura, estou conseguindo manter uma tranquilidade, um equilíbrio mental. Eu penso duas vezes antes de falar alguma coisa, de tomar uma atitude por impulso”, explicou.
‘Ninguém sai como entrou’, diz professor
Outros 1,3 mil presos do Rio participam do projeto: 62% possuem o ensino fundamental, 34% o ensino médio e só 4% têm formação universitária.
De acordo com a Seap, os participantes são uma pequena parte dos 53 mil detentos que formam a população carcerária do estado do Rio. Um dos objetivos é fazer com que o comportamento e a formação de quem vive no cárcere melhore por meio da cultura.
“Ninguém sai da leitura da maneira que entrou. É muito difícil isso acontecer, passar pela leitura sem uma transformação. Então imagino que, para todos eles, tem esse deslocamento possível”, destacou o professor Marcelo dos Santos.
Santos é coordenador do projeto desde a fundação, em 2016 e também é professor da escola de Letras da Unirio. Ele contou que lê mensalmente entre 200 e 300 redações feitas por detentos sobre os livros que são lidos.
O trabalho é dividido com outros três professores da mesma universidade e outro da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) para avaliar e analisar a evolução do processo de leitura dos detentos.
Clássicos e autoajuda
O projeto conta atualmente com 116 títulos acessíveis aos presos e todos são fruto de doações que a Seap costuma receber pela coordenação do projeto (veja no final da reportagem como participar).
Nas estantes, os detentos inscritos no programa encontram livros de autoajuda, obras que falam sobre espiritualidade e clássicos da literatura brasileira e internacional.
De Kafka a Machado de Assis
Alguns autores estão entre os preferidos: Augusto Cury, William P. Young (autor de “A cabana”), Machado de Assis, Lima Barreto e Bernardo Guimarães. “O processo“, de Franz Kafka, se destaca entre os livros mais procurados.
“É um livro que, aparentemente, é difícil. É um livro bastante inacessível se você pensar na forma como ele é escrito e no tempo que é escrito. Mas é um livro de grande identificação. Inclusive, as resenhas que a gente corrige sobre ele são muito ricas, por uma identificação imediata, já que falam de toda questão de um processo judicial”, diz Santos.
Sérgio Cabral é um dos inscritos
O projeto teve maior visibilidade recentemente com a divulgação da participação de presos conhecidos, como o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, preso desde novembro de 2016 pela Operação Lava Jato e atualmente cumprindo pena na Cadeia Pública Pedrolino Werling de Oliveira, conhecida como Bangu 8.
A defesa do ex-governador confirmou ao G1 a informação, mas não revelou quantos livros ele já leu na prisão. Outros presos na mesma operação também participam do programa.
Na Penitenciária Esmeraldino Bandeira, as atividades do projeto acontecem dentro do Colégio Estadual Angenor de Oliveira — Cartola. Originalmente inaugurado em 1969, no Presídio Ary Franco, a instituição foi reinaugurada em 2010 pelo então governador Sérgio Cabral.
Presídio feminino
No Instituto Penal Oscar Stevenson, em Benfica, na Zona Norte do Rio, onde funciona uma unidade feminina o interesse pela leitura surgiu da troca em conversas entre os grupos de cerca de 20 presas.
A inspetora penitenciária e diretora da Divisão de Educação da Coordenação de Inserção Social da Seap, Simone Viegas, explicou como o programa de leitura é desenvolvido na unidade. Segundo ela, eram poucos livros para atender turmas maiores de leitoras.
“As turmas eram maiores do que a quantidade de livros. Mas era sempre uma troca interessante. O segundo encontro sempre foi o mais interessante de todos. Elas trocavam informações, indicavam livros uma para a outra, emprestavam livros para aumentar o número de internas participando”, explicou.
Transformação
Simone disse que a leitura acaba mexendo na relação dos profissionais que trabalham nas cadeias com os detentos. Ela acredita que é um incentivo e acredita em uma mudança a partir desse tipo de iniciativa.
“É uma relação que me alimenta muito. É o que eu buscava no sistema quando eu entrei. Eu não trabalhava com educação prisional. Custodiava os internos, via a parte da segurança, enfim, a rotina de uma inspetora penitenciária. E o que me alimenta, hoje em dia, é fazer parte de uma coordenação que vê essa parte educacional. É o que eu acredito que pode mudar”, destacou.
Perguntada sobre se a leitura transforma, Simone explica que a experiência a mudança pode ocorrer de pessoa para pessoa. Segundo ela, do que já encontrou nas ruas, percebeu que os livros podem ser uma chance para manter a sanidade para quem está com a liberdade restrita.
“Já tive a oportunidade de encontrar algumas meninas fora, muito alegremente. Algumas trabalhando, algumas com dificuldades enormes. Se saem diferentes? Sim, saem diferentes. Projetos educacionais como esse dão uma luz no fim do túnel. Uma opção, ainda mais no cárcere, que é um momento muito difícil de estar com ele mesmo. Então, talvez, na leitura, que é o que eles me passam isso, é um momento de reflexão, de calmaria em um lugar tão difícil”, contou
Ritual dentro da cadeia
Em alguns casos, a leitura se torna uma espécie de ritual dentro da prisão. Para o detento do Esmeraldino Bandeira, o estudo começa cedo, quando o presídio está silencioso.
“Eu acordo e já começo a minha leitura. Às 6h30 da manhã eu começo, que é o meu momento de silêncio lá dentro, é o momento que eu estou mais em paz e eu consigo ler tranquilamente”, explicou o detento. Ele disse ainda que lamenta ter demorado tanto a ter um contato mais profundo com os livros.
“Uma experiência em que, muitas vezes, o aluno só entra em contato aqui, privado de liberdade. A leitura é o alimento do conhecimento, a chave dos bons pensamentos e a base de um futuro melhor, que verdadeiramente é capaz de resgatar e transformar vidas”, afirmou.